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CRÔNICA – A minha trilha para o desencanto da ilusão

26 de junho de 2017 - 13:24

A vontade de estar presente e colaborar nessa intervenção energética denominada Síntese não vem de agora. Não pude testemunhar nas oportunidades em que o MC passou pelo mesmo palco que voltaria a se apresentar. Essa história começa muito antes do dia 24/06/2017, precisamente no dia 12/12/2015, data que os irmãos do Vale do Paraíba colaram pela segunda vez em PG, mas eu e meu mano Rafike, voltávamos de SP nessa na mesma noite.

Tenho um hábito que me acompanha há um bom tempo, de estudar discografias em viagens, sobretudo quando são de ônibus. Isso decorre do período da faculdade, onde obrigatoriamente passava cerca de 2 horas dentro de um ônibus todos os dias, durante alguns anos, pois estudava em PG e morava em uma cidade vizinha.

Pois bem, me preparei para aquela viagem e me municiei da discografia do Síntese, e a cada quilômetro que passava, cada música que ouvia, cada idéia lançada me tirava cada vez mais da minha zona de conforto. Ao terminar de ouvir, eu tinha uma lista de tópicos do que eu estudaria pelos próximos meses.

O tempo passou e aquela lista de tópicos que eu tinha para estudar virou uma rotina de estudo, resultando em uma referência na música ‘Reflexão’, onde cito:

“Um salve aos verdadeiros manos e minas do vale, mesmo de longe sinto conexão mais forte que circuitos soldado em silício, sem latência, perda ou fios”.

Essa referência decorre a meu paradoxo em vivenciar a tecnologia onde o seu universo evolui dentro do Vale do Silício, (sou analista de sistemas por formação) junto a uma crítica direcionada a uma escritora brasileira qual teve certo reconhecimento no Brasil alegando sucesso na famosa região da California, mas foi desmentida. Ela chegou a escrever uma série de livros entitulados “A Menina do Vale” vendendo palestras embasadas em experiências duvidosas.  Ao ouvir aqueles raps tão viscerais, em paralelo a tudo isso, me causaram uma mudança comportamental necessária em determinado momento. Junto a Síntese vieram as idéias de manos como Axel Alberigi, Nego Max, Inglês entre outros tantos irmãos e irmãs que hoje desenvolvem sua arte no mundo, mas tem origem no Vale do Paraíba.

O DIA

Eis que chega o grande dia, sábado de tempo seco e ensolarado, típico de inverno, o tempo passou rápido, quando olho no relógio já são quase 19 horas. Confirmo com os irmãos que vão chegar junto e está tudo certo até que meu filho que passou o dia mais retraído que o comum, relata não estar muito bem. Sem nenhum sinal de febre minha esposa recorda uma indisposição alimentar, mas tudo parece estar sob controle.

Agora só faltam 15 minutos para as 23 horas, confiro se está tudo bem antes de ir, indagado, ele balança a cabeça em tom de afirmação enquanto divido sua atenção entre eu e a construção do seu mundo no Roblox. Subo a pé da Ronda, são no máximo 15 minutos caso não ocorra nada de anormal, e a medida que subo em direção ao centro da cidade, as luzes ficam mais fortes, assim como o peso na consciência do pai que sai naquele momento tão particular de casa. Esse pensamento é retraído ao enxergar um reflexo na vitrine de uma loja. Uma luz azul e vermelha vinda de um carro que vem diminuindo a velocidade mesmo com o semáforo estando com todas as luzes verdes, há pelo menos 10 anos eles me ignoram, nem sempre foi assim, mas essa marca continua válida.

Decido ir pela Rua do Rosário, mesmo caminho que fazia quando estudava no Regente, é meio que uma imersão ao passado, já que no momento resido na mesma quadra que morei quando na sexta série, fui embora de PG. Um irmão me aborda pedindo ‘intera’ pra agilizar uma bebida mais forte, já que segundo ele “a noite vai ser foda hoje”. Há algum tempo não tenho costume de andar com dinheiro na carteira, mas afirmo positivo ao mano que segue no seu fluxo. Quando me deparo, a iluminação do ponto azul parece acesa demais, isso me fez pensar que há algum tempo não passava por ali naquele horário, já estou na Coronel Bittencourt, decido seguir por ela, e vou.

A rua está calma demais pra um sábado a noite, morei num apartamento há cerca de um ano nessa rua e não era tão calma assim, sigo até a Santa Casa e como um gps busca o caminho mais curto viro novamente à direita pra ver alguns um pixos que vejo de longe. Chegando mais perto consigo ler e esse texto me faz refletir ainda agora, aqui, escrevendo essa crônica, “Neva na Babilônia”, não sei por que, mas esse pixo bateu tanto quanto o “Fui roubado, andei de ônibus” que fica nas proximidades do terminal central, ou os postes marcados pelo “Douglas Ferreira”, também tenho esse hábito de buscar observar as frases pixadas e entrar no mundo de quem fez, como diz um amigo, é pira minha.

Chegando na esquina vejo o movimento pra entrar no evento, e já avisto alguns irmãos na esquina amenizando o frio. Em uma sacola azul identifico a vodka, mas não o refrigerante, hoje praticamente não bebo álcool, mas ainda lembro a cor do litro de refrigerante mais barato de alguns anos atrás e não era o mesmo. 

Após falarmos sobre família, trampos e rimas, quase que de forma obrigatória paramos no assunto política, que nas oportunidades que posso estar presente, sempre é pauta. Isso me deixa contente, saber que apesar da massa ainda estar anestesiada, a boemia do movimento leva seus fundamentos adiante mesmo em uma nova geração. Encontro meu mano Rafike e decidimos entrar, olho no relógio está cravado a zero hora do novo dia. Estou na fila para entrar e encontro um mano produtor, daqueles zika, e automaticamente me vem um trabalho recentemente lançado por ele e lembrando fiz questão de referenciar isso. Na fila conversamos rapidamente até que chega minha vez de passar pela revista que não demora. A primeira voz que ouço é do Sabotage, que ecoa na área interna que dá o acesso até onde vai acontecer o show. Já vejo vários rostos conhecidos, geral conversando, confraternizando e isso é o que faz a engrenagem do movimento hip hop girar. Achamos um espaço e nos acomodamos, até que numa virada Guinomon que faz seu set como DJ, começa a rolar “Hold you Down”, The Alchemist estralando e no ato vem na mente a imagem de Prodigy, que faleceu há alguns dias. O frio dá espaço na pista que começa a encher aos poucos, um mano que chega relata que a fila lá fora está cheia, por isso demorou a voltar. O assunto é rap! Assim entro numa conversa debatendo o momento da cena, e ali ficamos algum tempo intensamente conversando até que me dou conta que agora o piloto da nave já é o DJ FB, que manda nas caixas “Estilo Cachorro”, e a pista canta em coro. Já não há mais frio agora, ouço só clássicos do nacional que escuto nas pausas quais explico alguns conceitos das linhas que escrevi para um parceiro que acompanha nosso trampo há um bom tempo. Me chama a atenção a acústica, hoje em especial, pois se eu quiser ouvir o som que está rolando os diálogos não atrapalham as pedradas que saem das caixas e se quiser trocar idéia não preciso mudar um só db do meu tom de voz, vou atribuir isso à alquimia do técnico de som.São convocadas ao palco o duo feminino que acompanho há algum tempo pela internet, mas ainda não tinha visto nenhuma performance, não por falta de oportunidade, mas por alguns contratempos que dariam outras histórias.

Eis que sobe ao palco Philliaz e manda uma idéia reta sobre mulheres, homens e respeito. O show é intenso, rimas profundas e a cada compasso se ouvia algum comentário bem ao fundo como “…essas mina são f***”, “mano, que som louco é esse !?”, acredito que isso era unanimidade ali. A performance dava uma idéia do que estava por vir, vivência, mensagem e muito rap do bom, que continuou com DJ Cisco tocando o melhor das nacionais deixando também sua homenagem a Prodigy. Todos já na mesma sintonia. Vejo o celular que há pelo menos uma hora não havia passado pela minha mão, e já beira 3 horas da manhã, essa foi a maior prova que o tempo passou e não fui atingido.

DJ Willião toma posição para que Neto que é saudado ao chegar na casa inicie a sessão. Como a mão que acaricia a pele antes de aplicar a injeção necessária para a cura, uma intro prenuncia o que estava por vir até que com semblante sério, o mesmo de quem está em uma missão e tem suas responsabilidades, Neto faz com que aquela energia seja canalizada, isso é nobre e poucos tem esse dom. Sua comunicação não se resume às rimas, mas como uma bolha que o cercava e atingia todos a cada movimento. Idéia, vivência e mensagem! 

Problemas que afetam todos são evidenciados e colocados em pauta, ali os ensinamentos do hip hop se apresentaram mais do que nunca. O público pedia um bate cabeça, que veio na voz uníssona cantando “…alado from hell, do inferno ao céu, sem massagem”.

Idéias são trocadas e ao puxar pela memória celebra-se o retorno aos Campos Gerais, agora com o frio que Neto não conhecia, mas com o calor da pista de outras primaveras, aliás, também de verões.

Vários sucessos performados e cantados, até que como uma projeção para a vida, o show encerra com o pedido de que não precisamos de mais problemas. Tudo pareceu tão rápido e intenso, mas ao colocar o pé na rua olhando no relógio, já eram quatro e vinte da manhã.

Refletindo ao voltar caminhando na madrugada para a casa enquanto as luzes dos postes pela Taunay a cada metro se tornam mais amareladas, compreendi que não estar no show na ocasião passada, foi como uma preparação. Agora estava sintonizado na mesma frequência que o Neto naquele palco, e essa comunicação sem barreiras quando bate, te leva para cima.

Nenhum organismo delega atribuições que o seu corpo não seja capaz de desempenhar, cheguei a essa conclusão quando abro o portão e busco a chave no bolso.

Chego em casa e vou ver meu filho após verificar que minha esposa dormia ao lado da bebê. Ele estava acordado e pede pra que o leve ao banheiro, chegando lá ele regurgita o que lhe fazia mal, acompanho auxiliando a cada passo, ele ainda está assustado, mas já se sentindo melhor volta a dormir, mas eu já não consigo e começo a regurgitar tudo isso.

 

 

Redação Agora1
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